Dom Luiz Cappio faz discurso no seminário que comemorou cinco anos da Declaração Ecumênica da Água como Direito Humano e Bem Público, assinada por várias igrejas (inclusive a CNBB) e ainda colhendo adesões.
Nossa Terra, nossa Água, nossa Vida
Saúdo a todos os membros dos vários Conselhos e Confederações Eclesiais Nacionais que celebram os cinco anos da assinatura da Declaração Ecumênica da Água como Direito Humano e Bem Público.
Esta Declaração reconhece a Água como um bem fundamental para a vida e que o acesso a ela é um direito
humano. Com isso a declaração exige que a Água seja tratada como um bem público e que sejam definidas prioridades legais para o seu uso.
Os signatários se comprometem a “convidar a todas as comunidades eclesiais, entidades ecumênicas e organizações sociais a apoiarem essa declaração” como também exigem que os “países se comprometam em assumir o direito humano à Água como um bem público mediante uma legislação adequada, bem como a envidar esforços e a se empenhar na criação da Convenção Internacional da Água no âmbito da ONU.
Senhoras e Senhores, O ser humano se encontra frente a um momento histórico jamais vivido antes. Este planeta azulado em um universo divino, estrela do firmamento, privilegiado em belezas e riquezas, que sempre nos ofereceu sustento e conforto, já agoniza há longa data, frente à insana exploração humana. O momento é grave e pede a nossa reflexão com muita seriedade e responsabilidade. O momento exige consciência para que lutemos contra a destruição de nossos rios, de nossas matas, de nossa gente e contra a arrogância e ganância dos que querem transformar tudo em mercadoria e moeda de troca com fins econômicos.
Nosso orbe exige que priorizemos a vida, cessando a poluição do ar e das águas, degradação dos solos, destruição da fauna e da flora e a corrupção do ser humano. O planeta, nossa casa, pede alento, um pouco de paz e condições propícias para recuperar a vitalidade e poder continuar vivendo de maneira sadia. Pede investimento e, sobretudo, cuidado que, segundo o grande pensador Leonardo Boff, é o outro nome do amor.
Todos os bens criados foram colocados pelo Criador a serviço e aos cuidados do ser humano. Temos que nos servir e cuidar destes bens. Do ar puro, das nascentes, florestas, reservas minerais com consciência e respeito. Poluir o ar com dióxido de carbono, cortar rios com barragens, destruir matas e poluir águas com esgotos e agrotóxicos, plantar para não gerar alimentos têm sido tarefas impostas como “necessárias para o
desenvolvimento”. Mas que desenvolvimento é este?
Desenvolvimento sem sustentabilidade é conceito errôneo e ultrapassado. O verdadeiro desenvolvimento deve ser sustentável, social e ecologicamente, e exige que corrijamos as agressões já cometidas. Nesta reflexão que compartilho com vocês, não a faço como especialista, mas como um pastor ribeirinho. Há
quase quarenta anos vivo à beira do Rio São Francisco, o Velho Chico. O que falo é a partir do que ai vivo, junto ao pobre e bom povo das barrancas, ilhas, lagoas, vazantes e matas deste rio abençoado por Deus e desgraçado por mãos humanas.
Dos problemas que em torno do São Francisco vivemos e do modo como os enfrentamos, descortinamos
questões semelhantes na América Latina e no mundo, e procuramos interpretar suas causas e determinações para nos fortalecer neste enfrentamento. É como entendo o sentido de estarmos aqui e são estas nossas expectativas da troca de experiências, conhecimentos e compromissos solidários. Estes os passos desta fala que expressa também a trajetória de tantos irmãos e irmãs, companheiros de caminhada, na igreja, na sociedade e nos movimentos sociais.
O São Francisco é o maior rio totalmente brasileiro e historicamente o mais importante, chamado “rio da
unidade nacional”, porque foi caminho para os colonizadores penetrarem o interior do imenso território nacional e o ligou de norte a sul. Com quase 3.000 km, 18º rio do mundo, tem comprimento superior ao do Danúbio e mais do dobro do tamanho do Reno, e drena uma bacia hidrográfica de 640 mil km2 (8% do território nacional), maior que a França e Portugal juntos. Nela vivem cerca de 16 milhões de pessoas (9,6% da população brasileira). Explorado intensamente e sem preservação a partir dos anos de 1940, para produção de energia elétrica, irrigação de frutas, de grãos e agrocombustíveis (cana para etanol), criação de gado e abastecimento doméstico e industrial, em pouco tempo tornou-se doente e moribundo. Desmatado, assoreado, poluído, sua vasão média, que já foi de 3.000 m3/s, em 1929, quando começou a ser medida, maior que a do Nilo, baixou para 2.000 m3, na segunda metade do século, atualmente é de 600 m3/s.
Estudos recentes feitos por pesquisadores dos EUA concluíram que sua vazão caiu 35% neste meio século.
Poderá perder até 20% da que resta, conforme estudos baseados nas pesquisas da ONU sobre mudanças climáticas. Entre 1992 e 1993, por um ano, acompanhado de mais três companheiros – um lavrador, uma religiosa e um ambientalista – caminhei da nascente á foz do São Francisco, numa peregrinação religiosa e ecológica, místico-política. Pudemos ver de perto a dureza da vida dos ribeirinhos, a importância simbiótica do rio para eles – a quem, como a um pai, chamam de “Velho Chico”. Constatamos as agressões que o rio
e o povo sofrem, entre resignados e resistentes. Clamamos aos responsáveis por cuidados. Ao povo, além dos cuidados que ele mesmo pode e deve ter, incentivamos a luta em defesa do seu rio, condição fundamental de sua própria vida. Dizíamos: “Rio morto, povo morto; rio vivo, povo vivo”! E o povo nestes últimos anos tem se levantado por sua vida, mas são maiores os poderes da morte.
Diante da insensibilidade do governo brasileiro às vozes críticas da ciência, da igreja, da sociedade e dos
movimentos e organizações populares, e para provocar a suspensão das obras, o debate e o aprofundameto dos estudos em busca da verdade do rio, do semi-árido e da transposição, fiz dois jejuns: um por 11 dias em 2005 e outro por 24 dias em 2007. Foi grande e mesmo surpreendente o apoio recebido, inclusive daqui da Suíça, a quem aproveito para agradecer – Deus lhes pague! Mas foi insuficiente para demover as
autoridades e retroceder os mais poderosos interesses por trás do projeto. Jesus dizia que certa casta de demônios só é expulsa com jejum e oração (Mt 17,21)... Deve ter faltado fé, pois ainda não os expulsamos......
Infelizmente o que acontece com o São Francisco não é exceção. No Brasil, sete de cada 10 rios estão poluídos. Segundo as Nações Unidas mais da metade dos rios do mundo está poluída. Alguns dos rios
mais importantes do mundo, que abastecem áreas populosas, estão perdendo vazão. Um terço dos 925 rios estudados pelos pesquisadores estadunidenses acima referidos apresentou mudanças significativas nos fluxos de água nos últimos 50 anos, sendo que aqueles que perderam vazão ultrapassam os que ganharam, em proporção de 2,5 para 1. Resultado da desordem climática e da intensificação do uso econômico indiscriminado e irresponsável dos bens naturais – água, terra, matas, minerais – das bacias hidrográficas.
Se é verdade que “um rio é como um espelho que reflete os valores de uma sociedade” , a nossa cada
vez vale menos o que bebe e come, vale talvez o que produz de dejeto, lixo e poluição... Os rios são apenas as maiores evidências da insustentabilidade do nosso modo de viver e de lidar com as águas do planeta.
Na realidade, o Projeto de Transposição do Rio São Francisco, as imensas monoculturas de eucalipto, e
agora o terrível projeto da Barragem de Belo Monte na Amazônia não são pensados para a melhoria
de vida das populações, mas projetos ardilosos para aumentar a fortuna dos mais ricos, não obstante gerarem a destruição da natureza, o desemprego, a miséria, a fome e a sede. Animam-se nos sentimentos
primitivos do “lobo” que em nós habita: avareza, egoísmo, soberba. Produzir riqueza a qualquer preço, mesmo causando prejuízo à natureza e às populações.
Em 1990, 20 países sofriam pela falta de água. Em 1996 já eram 26 países. As previsões dizem que em 2020 serão 41 países e em 2050 serão 2,5 bilhões de pessoas no mundo estarão privados de água. De 1500 até os nossos dias, em mais de 60 conflitos a água foi instrumento ou causa. O século XX, com a expansão do capitalismo e o desenvolvimento tecnológico foi, de longe, o mais mortífero. Vivemos um neocolonialismo e desta vez a principal riqueza a ser saqueada, ao lado da terra agrícola e dos minérios, é a
água.
Um inédito Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil foi recém-lançado no Brasil indica que dos 300 casos documentados, em 116 a água de alguma forma está presente. Segundo a Constituição Cidadã Brasileira de 1988, a prioridade dos investimentos públicos em projetos hídricos deve ser a dessedentação humana e animal. E os mega-projetos de Transposição do Rio São Francisco e Barragem de Belo Monte no Rio Xingu visam a segurança hídrica de projetos do agro-negócio do Nordeste e a segurança energética para grandes projetos minero-industriais na Amazônia, além de desrespeitarem territórios de povos tradicionais, indígenas, quilombolas e camponeses extrativistas.
Neste sentido os projetos são anticonstitucionais e agridem direitos fundamentais da população. Estes projetos faraônicos farão com que o povo, principalmente das cidades, subsidie os usos econômicos da
água, como a irrigação de frutas nobres, criação de camarão em cativeiro, produção de aço e as mega-monoculturas para a produção do combustíveis. No Brasil o custo da energia é bem mais barata para as empresas e bem mais cara para o povo. Os projetos são financiados com dinheiro público e é o povo
quem paga a conta do uso por parte das empresas. De novo é o pobre colocando a mesa dos ricos e se contentando com as migalhas que dela caem.
Diante da crise atual da água, estou certo de que temos a chance – talvez a derradeira – de perceber a
mais grave encruzilhada da humanidade: a vida, de que a água é a mais completa expressão, ou a morte. Arrisco dizer que o futuro dependerá do que fizermos como solução para esta crise, do que fizermos com a água. É nesse sentido que esta Declaração da Água como Bem Público e Direito Humano é importante, pois toca numa questão fundamental da preservação da vida. O dilema se impõe: a água como direito garantido a todo ser humano e a todos os seres vivos, ou a água como negócio, privatizada, mercantilizada, lucrativa e assim negada, poluída, profanada, desviada, a produzir sede, fome, doenças, extinção de espécies e morte. Aqui não há meio termo. Pois, submetida a água – origem e manutenção da vida – aos ditames mercantis do neoliberalismo, não sobrará mais nada.
É preciso respeitar a mãe natureza e a população que suporta o ônus de todos esses projetos insanos. A natureza merece cuidado e o povo merece consideração e respeito. Afinal de contas é sobre seus ombros que pesa o preço destes projetos que beneficiam os poderosos. Nossa luta é contínua e está firmada no fundamento que a tudo sustenta: a fé no Deus da vida e na ação organizada dos cidadãos, pois as bênçãos de Deus derramam-se equanimente sobre todos.
Nossa luta maior é garantir a vida, a biodiversidade dos ecossistemas, o verdadeiro desenvolvimento para
as populações do semi-árido do Nordeste e da Amazônia. Esta mesma luta é para que o Estado reconheça a dignidade do homem do campo e das selvas. Que estes possam produzir alimentos e oferecer água com
qualidade aos que necessitam, como também receber a devida atenção de políticas públicas em seu favor.
Não basta dizer “não” ao Projeto de Transposição do Rio São Francisco, às monoculturas de eucalipto e
demais monoculturas, à barragem de Belo Monte no Rio Xingu. É preciso um plano de desenvolvimento verdadeiramente sustentável que beneficie a toda população. Precisamos urgentemente construir uma nova
mentalidade a respeito do ar, da água, do solo, das florestas, combater o desperdício, valorizar o que temos, conservar e proteger os bens naturais em vista das gerações futuras. Por elas somos co-responsáveis.
A água é patrimônio de todos os seres vivos, não apenas da humanidade. Nenhum outro uso da água, nenhum interesse de ordem política, de mercado ou de poder pode se sobrepor às leis básicas da vida. Neste sentido a Declaração Ecumênica da Água nos recorda a necessidade das Igrejas se unirem em sua missão profética a serviço da justiça social e na defesa deste dom de Deus, a água, que meu pai e irmão
São Francisco chamava de “Irmã Água, pura, cristalina e casta.”
Para nós, consoante a Teologia e a Doutrina Social da Igreja Católica, três são os princípios de nossa relação com a água: a destinação universal (a todos os seres vivos), um direito humano fundamental
como o alimento, e a vida como prioridade em seu uso. É isso que afirma a Declaração Ecumênica da Água como Direito Humano e Bem Público. Caso contrário, além de flagrante injustiça e sofrimento a todos os viventes, o risco de desumanização, perda de sentido, barbárie e o caos, conseqüências inevitáveis do processo de mercantilização.
Sabemos que nas lutas por justiça social, pela terra, pela água, pelas florestas, pela biodiversidade, em suma, pela VIDA, muitos são os obstáculos. Poderosos interesses econômicos são capazes de influenciar mesmo os governos para impor a sua visão de um mundo onde tudo é mercadoria: o supermercado global onde tudo se compra e tudo se vende.
Acompanhamos entristecidos as notícias sobre o derramamento de óleo nos Estados Unidos e a empresa
responsável afirmando que pagará por todos os danos. Eu pergunto: a vida tem preço? As aves, os peixes... quem falará por eles? Do mesmo modo, os pobres deste mundo, os sem voz, os sem terra, os sem água... quem falará por eles?
No projeto da transposição do rio São Francisco é o exército brasileiro com todo o seu poder de intimidação que avança com as obras. Lembramos de todas as vítimas das lutas pela terra, a mais recente delas a irmã Dorothy Stang, barbaramente assassinada em reação ao seu clamor por justiça e vida digna. Mesmo aqui na Suíça, um país de grande tradição democrática, uma multinacional – Nestlé – incomodada
pelas críticas vindas da sociedade civil, organizou uma operação de espionagem que eu vejo também como uma clara ameaça, e um irmão nosso do Brasil (Franklin Frederick), parceiro nosso na luta, foi envolvido.
Cabe a nós, Igrejas comprometidas, sermos solidários com essas lutas tanto no Brasil como na Suíça e no resto do mundo. Este é o grito de um pastor que vem das bandas do sul, preocupado e muito ocupado com as ovelhas de seu imenso rebanho. Um pastor que deseja ardentemente que suas ovelhas tenham pastos
verdes para comer, água cristalina para beber, ar puro para respirar. Vida com qualidade e decência. Vida digna e cidadã e, para isso é preciso urgentemente espantar os lobos que rondam vorazes em busca de vítimas para saciar a sua insana fome de riqueza e poder.
Senhoras e senhores, No Evangelho Jesus nos ensina (João 10,10) que o Bom Pastor se preciso for, dá
a vida por seu rebanho e não mede sacrifícios para “que todos tenham vida e a tenham em abundância”.
O planeta é este imenso campo, nosso lar. O povo, o grande rebanho do Bom Pastor que por sua vez se torna em pastores e pastoras para cuidar com amor dessa casa e dessa família que nos foram confiadas.”Porque Deus, disse Bernanos, não tem outras mãos para trabalhar senão as nossas”.
MUITO OBRIGADO,
PAX ET BONUM!
Berna, Suíça, 6 de maio de 2010